O livro Arte de furtar foi concluído em 1656. Atribuído ao Padre Antônio Vieira (mais tarde essa autoria seria contestada), o documento era endereçado ao rei de Portugal, Dom João IV, um dos primeiros representantes da Casa de Bragança. Com o intuito de alertá-lo sobre os malfeitos de seus súditos no além-mar, a obra lista as diversas maneiras encontradas pelos representantes da coroa portuguesa para desviar dinheiro público na colônia. Uma breve passeada pelos títulos de alguns de seus 70 capítulos mostra como a “arte” já se manifestava e se aperfeiçoava no Brasil do século XVII: “Dos que furtam com unhas invisíveis”, “Dos que furtam com unhas toleradas”, “Dos que furtam com unhas vagarosas”, “Dos que furtam com unhas alugadas”, “Dos que furtam com unhas pacíficas” e até “Dos que furtam com unhas amorosas” são alguns deles.
O livro Arte de furtar é uma amostra de como a
discussão sobre a corrupção é antiga no Brasil – e a leitura diária dos jornais
atesta que o assunto continua presente. Na semana passada, O Globo publicou que
o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas, o DNOCS, teve um prejuízo de
R$ 312 milhões em contratações irregulares e gestão de pessoal. No dia
seguinte, a presidente Dilma Rousseff – que popularizou a expressão “malfeito”
durante um encontro com Barack Obama, dizendo que não os toleraria em seu
governo – teve de mostrar mais uma vez que dizia a verdade. A partir da
reportagem, ela decidiu, em mais um lance de sua bem-vinda “limpeza”, negociar
com o PMDB para retirar Elias Fernandes Neto, diretor do DNOCS, da direção do
órgão. Na quinta-feira, ele saiu.
Não existe sociedade cuja população seja mais ou menos
propensa ao roubo. Uma pesquisa científica feita anos atrás mostrou que, diante
de uma situação de dilema ético, cerca de 10% das pessoas agem de acordo com
rígidos princípios morais, outros 10% agem de forma a tirar o máximo de
vantagem, mas a maioria absoluta, cerca de 80%, se pauta principalmente pela
possibilidade de ser apanhada. Esse resultado se repete de forma praticamente
idêntica em diferentes nações. Portanto, o que faz diferença no nível de
corrupção de cada sociedade não é a ideologia, a religiosidade ou a classe
social de origem de seus dirigentes, mas as formas com que suas instituições
vigiam e punem os responsáveis.
Quem estuda o tema corrupção sem recalque moralista ou
interesse partidário costuma dizer que é impossível medir com precisão o
tamanho da roubalheira em cada cidade, Estado ou nação. O que alguns rankings
internacionais costumam mostrar nada mais é que a percepção da corrupção, uma
ideia tão imprecisa quanto a percepção do medo, da saudade ou do amor. Quem
rouba não deixa recibo. Tudo o que se conhece, portanto, não é o que foi
efetivamente roubado, mas apenas a fração correspondente ao que foi denunciado,
flagrado ou investigado.
Técnicos do governo encarregados do combate à
corrupção dizem que, nos últimos anos, os mecanismos de controle avançaram, as
investigações se tornaram mais profissionais e os órgãos de fiscalização
trabalham mais em parceria. No ano passado, a Controladoria-Geral da União
(CGU) apurou desvios que chegam a R$ 1,8 bilhão. A soma é resultado de investigações
que envolveram licitações fraudadas, cobranças indevidas de procedimentos do
Sistema Único de Saúde (SUS) e verbas que seriam empregadas em atividades
esportivas para crianças carentes. Desde 2002, quando a CGU passou a consolidar
os números, os desvios somam R$ 7,7 bilhões. Esses valores representam o
montante que deve ser cobrado dos responsáveis por essas irregularidades, mas,
sabidamente, está longe de ser o montante que foi roubado no Brasil.
Se é muito difícil medir com exatidão quanto se rouba,
bem menos complicado é saber como se rouba, como já havia reparado o autor do
livro de três séculos atrás. Furtar, de fato, é uma arte. Não no sentido de ser
algo louvável, mas no sentido de envolver uma multiplicidade de técnicas. O
roubo clássico é o desvio de dinheiro de obras públicas, com fraudes em
licitações e superfaturamento de preços. Em tempos recentes, a “arte” se
sofisticou, envolvendo operações mais imateriais, como cursos e consultorias –
serviços mais difíceis de quantificar em termos monetários. Na reportagem que
se segue, ÉPOCA listou sete das modalidades de desvio mais comuns no Brasil
atual, exemplificando cada uma com casos recentes denunciados pela imprensa.
No ano passado, a Advocacia-Geral da União (AGU)
conseguiu recuperar R$ 330 milhões para os cofres públicos em ações que
tramitam na Justiça que envolvem, entre outros, casos de corrupção contra a
administração pública. Só em 2011, a AGU entrou com ações que pedem a devolução
de R$ 2,3 bilhões. É uma luta que vale a pena. Ao ler sobre corrupção
praticamente todos os dias na imprensa, é comum que o cidadão muitas vezes se
sinta perdido, confuso, desorientado. O guia a seguir visa mostrar que, de
maneira geral, a corrupção não é algo tão complexo e rocambolesco como muitas
vezes pode parecer. Como uma carta endereçada ao cidadão brasileiro, da mesma
forma que Arte de furtar se dirigia ao rei Dom João IV, o objetivo singelo
desse levantamento é mostrar como se rouba no Brasil atual. Sempre tendo em
vista que, entre estes cidadãos, está a presidente Dilma Rousseff, tão
preocupada com os “malfeitos”.
Fonte:http://revistaepoca.globo.com/ideias/noticia/2012/01/como-se-desvia-dinheiro-no-brasil-trecho.html
(...)
Um comentário:
Parece-me que quando terminar seus anos de convívio com os brasileiros, qualquer ser desse planeta azul já pode se considerar um doutor no assunto, pelo menos em termos de péssimos exemplos, eles não podem reclamar.
Parece-me que brasileiro tem essa vocação de tirar vantagem em tudo. A satisfação dessas víboras reside na sensação de se dá bem acima de tudo. O mal feito existe na vida do povo tupiniquim desde o berço, quando ele é trazido a um mundo pelas mãos daqueles, que muitas vezes já tencionam se “apoiar” na vida pública. Lembro muito bem da fantástica frase proferida por um médico de certa cidade que dizia “nasceu mais um bacurau” e por que não um “até que enfim nasceu um diferente”?
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